sábado, 6 de junho de 2009

NISE DA SILVEIRA E SUA PSIQUIATRIA FUTURISTA.


“Estava prisioneiro/ dos vossos dias e das vossas noites,/ e busquei uma porta/ para dias mais vastos / e mais vastas noites.”

Khalil Gibran- O Louco


“A única sabedoria verdadeira vive longe da humanidade, lá fora na grande solidão, e só pode ser alcançada por meio do sofrimento. Só a privação e o sofrimento abrem a mente do homem a tudo o que esta oculto aos outros.

Igjugarjuk- xaman esquimó


“A maneira de tratar os loucos, em uma dada época, pode ser um indício do grau de maturidade psíquica ou espiritual de uma sociedade.”

Michel Evdokimov


Nise da Silveira é, sem dúvida, uma das personalidades mais importantes do século. Sua obra magistral, constituindo uma revolução de grande amplitude no seu campo, configura o eixo da psiquiatria do futuro. Diz Jung em 1959: “No meu entender, a investigação da esquizofrenia constitui uma das tarefas mais importantes da psiquiatria futura.” Nise não apenas trouxe inúmeros novos mapas para a prática psiquiátrica cristalizada e estreita. Ela inaugurou alguns métodos incomparáveis para se obter tais mapas, para a produção de uma profusa quantidade de “retratos”, isto é, imagens do inconsciente. Esta produção plástica documentando verdadeira “cartografia” da psique, mapas dos inumeráveis e perigosos estados do Ser vivenciados na chamada “loucura”, constitui um continente imenso ainda pouco explorado pela psiquiatria de nossos dias.

É absolutamente estarrecedor o fato de sua obra não ser estudada nas universidades no Brasil, especialmente nos cursos de Psicologia e Psiquiatria. Seu trabalho com as atividades expressivas, a “emoção de lidar”, a pesquisa do mundo interno na “esquizofrenia” através das imagens e do material que aflora em um ambiente de liberdade e acolhimento, são alguns terrenos em que a obra de Nise se notabilizou internacionalmente, destacando-se muito além de todos os tratamentos psiquiátricos anteriores, constituindo acervos por onde passou. Ela deixa para a posteridade as impressionantes coletâneas de documentos científicos preciosos (e, não raro, de grande valor artístico) do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras, onde tive a honra de estudar e trabalhar respectivamente. Alem disso, encontramos também outros museus, serviços e trabalhos terapêuticos, inspirados de forma mais direta ou indireta em suas inovadoras idéias.

Nise deixa igualmente uma proposta psicoterapêutica revolucionária: “Um método que utiliza, como agentes terapêuticos, pintura, modelagem, música, trabalhos artesanais,(...)”, mas que inclui o afeto catalisador, o respeito às vivências, às opiniões e atitudes dos freqüentadores de seus serviços, o direito a vez e voto para estas pessoas excluídas da sociedade, o estímulo à livre expressão e integração compreensiva do inconsciente, a individuação. Talvez a principal diferença entre os métodos convencionais e este sistema inovador de atendimento seja o trabalho com as forcas autocurativas da psique.

É impressionante a gratidão e o reconhecimento dos clientes e usuários em relação a este modelo de tratamento, não apenas mais humano, mas, efetivamente mais terapêutico e avançado em relação aos violentos e rústicos métodos psiquiátricos em meio aos quais Nise viveu, muitos deles ainda vigentes atualmente. Impossível dissociar a sua praxis terapêutica do arcabouço teórico, do enfoque altamente original e sensível às peculiaridades de cada pessoa, a junção de argúcia científica e de sensibilidade humana e artística, dentro de uma visão, em certo sentido, “sacramental” da loucura, subjacentes ao sistema de trabalho desenvolvido por ela.

Falo dela no presente, pois sei que ela esta lá, na “outra-parte” do mundo, como descreve Guimarães Rosa, “aonde as pessoas e as coisas sempre iam e voltavam”, nos observando a todos, amigos e continuadores de seu trabalho, e o cenário material onde transcorre este jogo cósmico, esta batalha arquetípica entre as forças conservadoras e progressistas da Psicologia e da Psiquiatria.

Nise é destas pessoas que constela nas outras profundas vivências arquetípicas. Sua atuação em nós não foi tanto de natureza pessoal. A força de Nise em nossas almas proveio exatamente do fato de ela representar dimensões e anseios transpessoais, que são intrínseca e universalmente nossos, a base mais profunda e eterna de nosso ser. Ela é também daquelas pessoas que em nossos sonhos aparecem como algo maior do que nós, símbolos do Si-Mesmo ou de seus mensageiros.

Tive, afortunadamente, múltiplos encontros, pessoais e transpessoais, com ela e sua obra. Meu contato inicial com seu trabalho foi, quando estudante de Psicologia, já em minha primeira visita ao Museu de Imagens do Inconsciente, me deparei com o impacto impressionante daquelas imagens e sua profunda interpretação. Tempos depois fiz um curso de “Terapia Ocupacional” ministrado por Nise e outros na Casa das Palmeiras, ainda funcionando na Tijuca. Foi ao me tornar um estagiário da Casa das Palmeiras e estudante do grupo de estudos do Museu de Imagens do Inconsciente que iniciei um contato mais próximo com aquela que, para mim, era uma das maiores mestras naquele campo. Nesta época, na Casa e no Museu, pude encontrar esperança no campo árido da Psiquiatria.

Foi quando, recém- formado, nos idos de 1980, que me deparei com uma encruzilhada de minha vida e formação, que, me veio o sonho elucidativo e orientador: “Eu estava “atrasado” para a Dra. Nise.” Como se o Homem de Dois Milhões de Anos, o Si-Mesmo, me estivesse dizendo: Você está atrasado para um grande encontro, se apresse, este e o seu caminho. Retomei o contato com ela, passando a novamente a freqüentar o “Grupo de Estudos C.G. Jung”, espaço pioneiro de estudos de psicologia junguiana, aberto a todas as pessoas afins, para onde confluíam como ate hoje, profissionais, leigos, artistas e estudantes de diferentes formações e procedências.

Tanto me apaixonei por este trabalho que fui, mais tarde, convidado por ela para Supervisor Técnico e depois Diretor Técnico Adjunto, supervisionando a equipe de estagiários de Psicologia que trabalhavam na Casa das Palmeiras. Antes disso acontecer, tivera o sonho em que “Nise me sagrava Cavaleiro em nome do sacrifício, da limitação e da dor, Amém”.

Depois fui percebendo melhor o que significava trabalhar para esta mestra exigente e de incomuns elevados ideais: muito sacrifício em vários níveis. Ela sem duvida era, de maneira velada, igualmente uma grande mestra espiritual, nos auxiliando a encararmos com profunda seriedade, desenvolvendo aguda sensibilidade e a darmos o melhor de nos mesmos no altar do trabalho com essas pessoas especiais que ela nos ensinou a amar, respeitar e ouvir com desvelo sem preconceitos ou fronteiras. Recordo-me dela no Grupo de Estudos C. G. Jung, nesta época lotado, quando, sentado no chão com meu caderninho, anotei a frase lapidar: ”O que o doente fala deve servir de meditação, deve servir mesmo de oração.” Era sua abordagem, em certo sentido, religiosa, que descortinava para nós como fascinante, numinoso mesmo, este universo da “loucura”, tão desencantado, desmitologizado pela psiquiatria, que ela tinha por missão de resgatar o valor e a poesia. A Psiquiatria antes de Nise vinha alimentando-se de imagens degradadas. Ela restaura os “deuses” e as “musas” nos seus devidos lugares: Pintura, arte, teatro, modelagem, tecelagem, etc. Lembro-me de Rainer Maria Rilke quando escreve: ”Se o cotidiano lhe parecer pobre, não o acuse. Acuse-se a se próprio de não ser suficiente poeta para apropriar-se de suas riquezas.” Nise foi, sem duvida, suficientemente poeta e visionaria para desvelar- nos, como nunca antes, as riquezas por detrás da suposta ou real ruína destas pessoas, em sua face voltada para nossa sociedade insana e mendiga de Alma e Religação.

Dentre algumas dimensões únicas e originais de sua obra, uma das principais é seu trabalho com os animais como co-terapeutas. Aliás, ela foi a maior psicóloga de animais que conheci.

Uma das peculiaridades, tanto de Nise como de Alice, duas personalidades paradigmaticamente marcantes e históricas no cenário da Psiquiatria, não só brasileira como a nível mundial, era o de constelar nas pessoas o arquétipo da grande mãe. “O mãe da humanidade”, dirigia-se José Basto a Nise com carinho e admiração, sentindo-a não apenas como “mãe” de sua nova vida, livre de reinternações, mas sentindo-a também como mãe de algo muito importante que beneficiou todos os usuários dos serviços de saúde mental , e, em certo sentido, toda a humanidade.

Mais tarde, publicando um livro em co-autoria com a Dra. Nise sobre a Farra do Boi, mergulho cada vez mais profundamente na Psicologia Transpessoal, nas fronteiras da Psicologia com as Tradições Sagradas inclinação que tivera desde o principio de meus estudos de Psicologia e Religião, e em seguida na psicologia da Meditação e na psicologia das Práticas Oraculares. Posteriormente avancei investigando Terapias “Alternativas”, uso Terapêutico e Espiritual das Plantas Sagradas ou Xamânicas (os Enteógenos), e o método de Terapia Holística que fui desenvolvendo, integrando as metodologias de Jung, Nise, Roger Woolger e Stanislav Grof com as Medicinas Tradicionais e as Tradições Sagradas.

Inclusive nesta área, da Psicologia Transpessoal, constatamos o gênio pioneiro de Nise. Ela nos recorda a discriminação feita por Artaud de dois tipos de experiências com o imaginário, as do “Fantástico de qualidade nobre, nas quais a desordem é apenas aparente, obedecendo na realidade a uma ordem elaborada no mistério”, e o fantástico de outro nível, “obscuro, informe”, onde se originam “sensações e percepções falsas. Fantasmas despudorados que afetam a consciência doente.” Ai encontramos um importante salto qualitativo, que abre portas para uma revisão completa de inúmeras avaliações etnocêntricas realizadas pela psiquiatria, com o conceito interdisciplinar, formulado por Stanislav Grof e vários outros pesquisadores e terapeutas, de “emergência espiritual”. Tendo a coragem e ousadia de comparar os métodos psiquiátricos largamente aceitos com a religião antiga do México baseada no culto do peyotl, Planta Sagrada que induz estados não-ordinarios de consciência, ressaltando as vantagens deste ultimo enquanto método terapêutico baseada no depoimento do próprio Artaud. Ai Nise demonstra seu faro visionário e ausência de preconceitos antecipando, talvez, uma outra importante chave da psiquiatria do futuro: a utilização de Plantas Enteogênicas, Xamânicas ou Sagradas, plantas “psicoativas” milenarmente testadas em seres humanos, que poderão, um dia, desempenhar com vantagens, o papel que os psicotrópicos com seus inúmeros efeitos colaterais possuem na psiquiatria atual. Possuo uma investigação neste setor, com trabalho de campo e também um Projeto de pesquisa para explorar esse continente desconhecido da Psiquiatria e Psicologia: a investigação acerca do uso ou da aplicação das Plantas Sagradas, Plantas dos Deuses ou Xamânicas para Terapia e Individuação.

Nise abre também o caminho para a compreensão da “esquizofrenia” como crise envolvendo o despertar da Kundalini, encontrando em suas observações nos navegantes dos estados do ser que a sociedade denomina de “loucos”, fenomenologia descrita por Jung, que é formulada com clareza por Darrel Irving de que “(...) muitos pacientes entregues aos cuidados de profissionais da saúde mental parecem possuir uma forte afinidade com os paranormais e os insolitamente dotados para encontrar o caminho dos estados transcendentes da mente”.

Foi também, após o segundo sonho em que ela me diz: “Eu te sagro Cavaleiro, em Nome do Sacrifício, da Limitação e da Dor, Amém”, que fiz os estudos iniciais do livro sobre a “Farra do Boi”. Ia percebendo, cada vez mais, que me tornara “Cavaleiro” desta Senhora e pusera meus conhecimentos à serviço das mesmas causas defendidas por ela, discípula de psiconautas e de animais. Ali abordo o tema do Sacrifício relacionado com expansão, ampliação da consciência e desenvolvimento psicológico, formulado em seus três níveis básicos: Sacrifício do Animal Interior, isto e, da Dimensão Instintiva da psique; do Humano Interior, representando o Ego posto a serviço do Si-Mesmo, e o Sacrifício do Deus, isto e, do Si- Mesmo para o desenvolvimento da psique e para individuação.

Tanto neste livro, restritamente publicado, bem como no texto que se inspira no extermínio de menores de rua, “O Sacrifício da Criança”, abordando este motivo, encontrei em minhas investigações o tema do fazer Sagrado, o Sacro-Ofício.

O curioso é que, sob a influência de Nise, e com a metodologia de elaboração dos textos inspirada no preparo do quindim de dona Marocas (há que peneirar sete vezes), me senti convidado a escolher e estudar, livre e criativamente, o tema do Sacrifício em diferentes níveis.

O Sagrado é um importante referencial de onde parece partir nossa história abreviada da “loucura” e, onde podemos, talvez, encontrar as chaves das explicações últimas desses estados de consciência modificada, que denominamos ignorantemente de “esquizofrenia”. Nise, tanto quanto o próprio Jung, abriram novos caminhos na compreensão dessa experiência.”

Numa visão que, em certos pontos se configura como baseada em uma tecnologia superior (fundamentando-se nas dimensões transpessoais da psique) à da psiquiatria convencional, a loucura era considerada na Antiguidade como Sagrada e relacionada aos deuses. Platão nos ensina: ”O poeta não consegue fazer poesia antes de estar possuído, de estar fora de si e da razão Ter cessado de habita-lo. Pois enquanto se apegar a essa faculdade, nenhum homem e capaz de fazer poesia ou de pronunciar oráculos... E por isso que o deus, depois de priva-los da razão, usa os poetas, os pronunciadores de oráculos e os adivinhos divinos como seus servos, para que nós, ouvintes, tenhamos a certeza de que não são eles que dizem o que é tão valioso, pois estão destituídos da razão, mas que é o próprio deus quem o diz, e que apenas nos fala através deles.”

Após a interpretação do Ocidente prosseguir no caminho da dessacralização ate o ponto máximo de decadência no inicio do século XX, o trabalho de Nise parece aplainar o caminho no sentido de restaurar a sacralidade da loucura, fechando um grande ciclo histórico e cósmico ao mesmo tempo.

Nise, sem duvida é como Jung, nosso mestre, uma psicoterapêuta e pensadora que configura uma ponte entre a aridez e primitivismo desérticos da Psiquiatria em seus primórdios e a nova Psiquiatria para a qual conceitos como “Emergência Espiritual” e despertar de Kundalini são fundamentais para uma pratica terapêutica menos patologizante e repressiva, considerando as complexas e transpessoais dimensões da psique humana redescobertas em tempos recentes. Com sua abordagem adentramos, sem volta, em novos rumos para a Psiquiatria do Futuro que já chegou, trazendo novos horizontes e perspectivas insuspeitadas para os que, como Nise, não temem o novo, o desconhecido e o futuro.

Gracias querida Mestra de todos nós.

Philippe Bandeira de Mello